terça-feira, setembro 27, 2005

O uso de animais no ensino e na pesquisa científica

No dia 3 de Setembro, creio eu, ouvi a apresentadora Luísa Mell, pela qual não consigo nutrir tão bons sentimentos, em seu programa “Late Show” dar a notícia de que havia sido aprovada no Estado de São Paulo a Lei nº. 11.977/2005 (claro que ela não me forneceu tantos dados). Tal lei regulamenta uma série de fatores com relação ao tratamento de animais, transporte, uso em pesquisa científica entre outros, e já é conhecida como "Lei dos Bichos".

É necessário haver regulamentação, sem dúvida alguma, para não haver abusos, e neste quesito, e apenas neste, devo congratular o deputado Ricardo Trípoli (PSDB), autor da Lei, publicada no Diário Oficial de São Paulo no dia 26 de agosto. A outra face a ser discutida é a da idéia por trás dessa lei: o que motivaria, além da razão já explicitada, sua criação.

Vou me ater ao que mais me chamou a atenção e ao que mais me diz respeito: a utilização de animais no ensino e na pesquisa científica. Entre proibições e limitações a lei presume a criação de uma CEUA (Comissão de Ética no Uso de Animais) para cada centro de pesquisas. Essa CEUA deve receber e aprovar cada protocolo de pesquisa que utilize animal, incluindo principalmente (e é basicamente para isso que ela existirá) o número total de animais utilizados, o método utilizado para sacrifício, e as condições de tratamento durante o período experimental.

Para meus amigos que não estão familiarizados com esses termos, vou explaná-los brevemente:

- Número de animais: Pede-se que seja utilizado o menor número possível de animais por experimento, sem estabelecer um máximo. Essa ausência de máximo é necessária, pois cada experimento requer um número mínimo, que é bastante variável dependendo das circunstâncias experimentais. É uma norma ética e justa, comumente adotada entre os pesquisadores, pois poucos gostam de dispor do seu tempo e de verba para comprar, cuidar e fazer experimentos com animais “extras”.

- Método de sacrifício: varia de acordo com o que o experimento e o cuidado com o material analisado exigem. Por exemplo: se fosse objetivo do experimento estudar nervos sensitivos não se poderia utilizar um anestésico em dose letal como método de sacrifício. É desestimulado o uso de qualquer método que cause sofrimento desnecessário ao animal, como, por exemplo, por inalação de éter.

- Condições de tratamento: é necessário haver quantidade suficiente de espaço, água e comida para o animal, além de um ambiente controlado e o mais adaptado possível à vida selvagem do animal. A exceção é a de que esses fatores estejam sendo estudados, como, por exemplo, mistura de água e álcool no lugar de água para avaliação do efeito crônico da ingestão de álcool em ratos, ou do efeito da luminosidade excessiva (por um período maior que o padrão de 12h) na produção de melatonina.

Saindo um pouco da máscara didática desse texto, vou discutir agora um pouco do que me propus no início do mesmo: a filosofia do "não uso" de animais em aulas/pesquisa.

Já faz algum tempo que tenho percebido uma intensificação na freqüência com que são noticiadas manifestações em defesa dos "direitos dos animais". Eu também protesto contra a exploração indevida e predatória das matas brasileiras, que acaba com a fauna da maior biodiversidade do planeta. Mas quando manifestantes afirmam categoricamente que os animais utilizados em pesquisa são mal-tratados e que qualquer experimento que utiliza animais como ferramenta deva ser eliminado, sendo julgados todos eles desnecessários e dispensáveis, tenho úlceras, como diria um filosofante da terrinha, e eu tenho vontade de repetir o que ouvi uma outra vez: qualquer uma dessas pessoas que se manifesta contrariamente à utilização de animais na pesquisa científica, se assinar um termo no qual conste que esta nunca se utilizará de produtos ou drogas cujos benefícios fornecidos totalmente ou em parte pela pesquisa em animais, este indivíduo ganharia meu respeito por ser uma pessoa coerente com seu pensamento e ideologia.

Toda essa filosofia contra o uso de animais é condenável a partir do momento em que é quase certo que cada um dos manifestantes desse pensamento já se beneficiou ou se beneficiará de técnicas cirúrgicas, medicamentos, implantes, tratamentos, dietas entre outras benfeitorias na área da saúde conquistadas com a pesquisa em animais de laboratório.

A hipocrisia intrínseca a este pensamento está mais explicitamente associada à nossa querida lei a partir da Seção III – Da Escusa ou Objeção de Consciência. Para exemplificar vou transcrever o artigo 39, o primeiro da dita seção:

Artigo 39 - Fica estabelecida no Estado a cláusula de escusa de consciência à experimentação animal.
Parágrafo único - Os cidadãos paulistas que, por obediência à consciência, no exercício do direito às liberdades de pensamento, crença ou religião, se opõem à violência contra todos os seres viventes, podem declarar sua objeção de consciência referente a cada ato conexo à experimentação animal.”
Lendo por uma segunda vez o Artigo 39, destaquei as passagens em negrito acima. Não sei se é coisa da minha cabeça... Se uma pessoa repudia a violência contra todos os seres viventes, tomaria ela, para tratar de uma infecção, um antibiótico? He he... Agora falando um pouco mais sério... O que a “violência” referida neste artigo tem a ver com a objeção de consciência à experimentação animal? O que motivou Ricardo Trípoli a fazer tal associação? Aposto na desinformação, na ingenuidade ou até mesmo na ignorância do deputado. Alguém suficientemente esclarecido com uma mínima noção de realidade e de mundo não teria essa ousadia de falar e tampouco propor um projeto de lei declarando a todos os cidadãos, em alto e bom som, sua incompetência legislativa.

Para falar das aulas utilizo a mesma seção III da lei. Temos o § 3 do Artigo 42, transcrito abaixo:

“§ 3º - No âmbito dos cursos deverão ser previstas, a partir do início do ano acadêmico, sucessivo à data de vigência da presente lei, modalidades alternativas de ensino que não prevejam atividades ou intervenções de experimentação animal, a fim de estimular a progressiva substituição do uso de animais.”
De súbito vejo o nível da minha formação superior descer degraus e mais degraus. Já estamos numa onda de “utilização de outros meios” que não a aula prática com animais, mas como já dizia o professor Nilson, do Departamento de Psicobiologia: “rato branco não é que nem japonês: não é tudo igual”. Ou seja, em que planeta poderia um software ou um rato mecânico (proposta que já ouvi de várias pessoas como alternativa) nos ensinar sobre a variabilidade entre os animais ou mesmo sobre dificuldades técnicas que podem ocorrer durante os procedimentos experimentais? Poderia citar diversos exemplos como um espermograma realizado em rato na aula de Embriologia no qual os espermatozóides morreram durante o procedimento devido ao tempo perdido durante a obtenção do material... Ou mesmo resultados superestimados obtidos na pesagem das glândulas tireóides na aula prática de modelos experimentais de diabetes em Fisiologia Endócrina. Nem sempre um rato desenvolve padrões epilépticos como os observados por dois grupos de cinco totais durante a aula prática de Epilepsia em Neurofisiologia.

São tantos exemplos que extrapolam a capacidade cognitiva dos nossos legisladores... Não devemos criticar apenas Ricardo Tripoli, autor da lei, mas toda a Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo. Apesar do inteligente veto do Governador Geraldo Alckmin, a lei foi aprovada depois da anulação do ato do Governador pela Câmara e mesmo com algumas mudanças a Lei continuou com defeitos inerentes à sua motivação e estrutura.

Finalizando, gostaria de pedir desculpas pela desordem das minhas idéias. Fiz o melhor que pude para dois pedaços de noite e nesse meio tempo, inclusive, descobri alguns nomes e reli grande parte da lei aqui discutida. Abraços a todos, especialmente aos colegas médicos que me odeiam tanto devido ao último texto e aos terapeutas ocupacionais que se sentem discriminados (nada de japoneses, computeiros, engenheiros, direiteiros filosofantes, etc etc etc, desta vez nos agradecimentos) Até uma próxima vez.
*Agradecimentos especiais à Ketna que gentilmente revisou o texto e forneceu apoio moral e psicológico

9 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Mermão, o erro é generalizado. Você reparou, muito acertadamente, na parte que lhe toca. Agora, isso ocorre em todos os âmbitos da vida brasiliense. As normas imbecis estão espalhadas por toda parte. Os erros são incontáveis.
Pra começar, a democracia! Quem teve a maldita idéia de colocar fabricantes de leis advindos do voto do povo inculto? Certamente não foi Aristóteles que dizia que a Democracia era um sistema para deuses. Vivemos numa zueira total, num bueiro fedido do universo chamado Brasil.
Ora, sem elevação moral e intelectal do povo como um todo, a legislação será sempre idiota, sempre gigantesca, aumentando junto com o número de problemas e presidiários. Já viu tamanha burrice? Só aqui mesmo.
Ou lutemos por uma educação diferenciada, ou pela aristocracia. Assim como está, não dá.

Desculpe-me se polemizei mais ainda a discussão. ;)

Abraço, companheiro de úlcera.
(Eu lhe respondi nos "comments" do meu Blog. Confira!)

1/10/05 14:20  
Anonymous Anônimo said...

Ahhh.. Vou linkar você lá no Blog. Abraço!

1/10/05 14:31  
Blogger Luís Guilherme Fernandes Pereira said...

caro Gabriel,

quando fui enviar projeto para a Fapesp, havia uma questão a responder se havia experimentos com animais, inexistente anteriormente.

Quanto ao texto, pode publicar sim, sem problemas. Caso queira citar os autores, somos:
Luís Guilherme Fernandes Pereira
Thiago Serra Azevedo Silva
Alan Godoy Souza Mello
Tiago Fernandes Tavares

todos estudantes de engenharia de computação da Unicamp.

Um grande abraço!!

15/10/05 00:51  
Anonymous Anônimo said...

Oi Gabriel,
há um tempo li esse texto seu, achei interessante e, hoje, achei que poderia escrever algo sobre ele. Bem, gostaria de colocar uma questão para você. Gostaria de saber qual o critério estabelecido pela comunidade científica (ou pelos responsáveis)que os animais podem ser experimentados num estudo? Ou seja, o que quero saber é: qual a justificativa da utilização dos animais para pesquisa? É o fato de não possuirem racionalidade? Se for, estamos entrando uma área filosófica estritamente problemática (como todas), a ética. Se a racionalidade for uma justificativa de humanos se sobreporem a animais, então, nossa sociedade (e, com isso, a ciência) está totalmente sustentada por uma ética que valorize apenas a racionalidade. A questão é: a racionalidade justifica o domínio? O caráter racional do ser humano pode ser apenas manifestado pelo controle?
É possível a ciência pensar a partir de outros alicerces?
Bom, é isso. Na verdade, foram três questões embutidas numa maior: o que justifica a experiência com animais? Uma pequena reflexão que não pude resistir em escrever...
Beijos e até mais!

31/12/05 10:41  
Anonymous Anônimo said...

Obs.: Apenas para ressaltar que meu argumento não se equivale ao de Ricardo Tripoli ("obedecer a consciência"...). A questão que levantei, a meu ver, se encontra num estágio anterior ao do argumento citado. Estou colocando em questão não a experiência, mas as bases pelas quais a possibilidade de um experimento com animais se sustenta e se torna eticamente aceitável antes de qualquer objeção.
Abraço

31/12/05 11:16  
Blogger Gabs said...

Vanice, gostaria de agradecer seu comentário, e segue um texto que fiz em resposta a suas questões, sei que dificilamente elas serão respondidas... Mas creio que o texto servirá para alguma coisa, nem que seja para aumentar a polêmica.

Você realmente tocou no coração de toda a questão. Eu posso começar dizendo que animais são usados como modelos experimentais pela incrível semelhança bioquímica e fisiológica que compartilhamos com eles. Não parece ético (uso essa palavra indiscriminadamente) utilizar seres humanos, o que seria, ignorando os aspectos éticos e filosóficos a respeito, a melhor e mais convincente maneira de testar ou experimentar algo em determinadas áreas da biologia.

Na verdade isso é feito. Um novo medicamento depois de ser testado em diversas espécies animais (geralmente três), é testado em humanos em quatro fases. Uma com pessoas saudáveis, uma com pessoas doentes já bem comprometidas, outras apenas com pessoas doentes, ainda com certo controle, e uma última em larga escala, quando geralmente são observados os efeitos colaterais (vide o caso Vioxx).

Também são usados humanos em experimentação psicobiológica e psicofarmacêutica, além é claro, de pesquisas fonoaudiológicas, citando exemplos próximos a mim. Quando se trata de uma experiência em fisiologia ou em imunologia, por exemplo, existem muitos riscos para o indivíduo testado; e a única maneira que é aceita pela sociedade (pelo menos costumava ser) é que os experimentos fossem realizados com animais. Agora vejamos... A razão disso tudo... Nunca me foi contada, posso te dizer. Mas acredito que esteja sim baseada também na 'racionalidade'. O ser humano se acha mais evoluído que outros animais, o que é uma falácia biológica sem tamanho, mas o fato é que nós dominamos o planeta. E parece a todos (ou parecia), e não só a mim, que, pelo benefício de toda a sociedade, vale a pena sacrificar outros seres. E uso aqui sacrificar num sentido literal.

Tratando-se de ética eu tenho certeza de que você poderia me dar uma excelente aula a respeito, mas na minha visão pessoal sobre esse assunto é algo semelhante a comermos carne. Temos granjas e fazendas com milhares de frangos ou bois; e para o benefício da nossa nutrição, sacrificamos, cortamos e consumimos carne. O exemplo dos bois e frangos não vale, em grande parte (se lembrarmos que vegetarianos consomem ovos e leite), para vegetarianos ou vegans, mas, mesmo para estes, vale com absoluta certeza (refutando a definição de vegan) a experimentação animal.

São incontáveis os benefícios, como já exemplifiquei no texto e não creio ser necessária essa retomada. Acho que a racionalidade que você levantou acompanha a necessidade natural de um progresso. Acredito que não somente o controle é a manifestação da nossa racionalidade, mas também grande parte de todas as atividades humanas, não estando inclusas aquelas exclusivamente instintivas, ou de natureza não-material.

Desviando um pouco da linha de raciocínio, segundo o Wikipedia, o termo Racionalidade é utilizado para descrever teorias filosóficas baseadas principalmente na razão, na verdade e no conhecimento. Assim sendo, posso dizer com certo grau de certeza que a ciência está sim baseada na racionalidade. Como seria de outra maneira? Mas a sociedade eu não conheço... Dizer que a sociedade está totalmente sustentada por essa ética me parece um erro, caso contrário não existiriam conflitos desta magnitude entre ativistas sociais e a experimentação animal. Os motivos para essas manifestações são diversos. Mas nunca vi nenhum deles que fosse científico. Tudo parece ideologia (sim, foi pejorativo).

Também consta no Wikipedia que racionalidade, para pessoas que acreditam em uma existência não-material (como alma e mente) do ser humano, é um elemento chave de distinção entre humanos e animais. Já neste assunto não sei o que eu posso afirmar como aspirante a cientista, já que biologicamente não existe distinção entre homens e animais. Melhor dizendo, não há nada que faça com o homem necessite de uma classificação especial em taxonomia ou em biologia molecular. Somos tão animais quanto os ratos os são. Imagino que você possa estar indignada com esta visão animal do ser humano, mas isto não é aquilo que eu acredito, e sim aquilo que eu observo. Eu tento viver com essa contradição.

A ciência possui outros alicerces diferentes da experimentação (já neste assunto tenho começado a me informar bem recentemente). Podemos observar a Astronomia, que se baseia quase que exclusivamente em matemática, física e química, ou mesmo a física, que derivou de todo o mecanicismo do Renascimento até o surgimento da física moderna... Até em biologia existem outras bases, como as narrativas históricas, quando falamos da Síntese Moderna (motivo de discussões recente com o Rafael).

Em suma, o que justifica a experiência com animais é a necessidade de um progresso e da inovação, intrínsecos na atividade humana. Sendo a forma mais eficiente do racional entender o mundo, a ciência baseia seu pensamento (e talvez, de certa forma, até sua ética) nestes princípios de verdade, conhecimento e razão que compõem a racionalidade. A sustentação da ciência também existe em outros pilares, mas a experimentação animal é crítica para diversos cientistas, principalmente de áreas como fisiologia, imunologia, farmacologia, histologia, psicobiologia. Uma negação a estes procedimentos significa um retrocesso assustadoramente grande para estas ciências e para toda a evolução do pensamento biológico. Agora, se vale a pena sacrificar essa evolução por algum motivo que seja apenas a "obediência à consciência" do deputado Ricardo Tripoli e de ativistas, ou por outros motivos não-científicos, não são os cientistas, e sim a sociedade quem deve julgar. Isso não quer dizer que eu confie na sociedade... Mas qual a alternativa?

Beijos e Abraços aos leitores!

31/12/05 15:23  
Anonymous Anônimo said...

Pois é Gabriel, aí está o seu diferencial. Não somente você se interessa por temas polêmicos, como percebe-se ao ler os assuntos de seu blog, mas também em esclarecer sua opinião com competência, naturalidade e ótima exposição de idéias. Daria também um ótimo jornalista ;D

Você será extremamente bem sucedido, não somente por seu talento profissional, mas principalmente por sua simpatia.
Com orgulho deixo-lhe este comentário.

Um beijo,
Ana Paula

8/1/06 22:10  
Anonymous Anônimo said...

Oi Gabz...
Bom, como já conversamos ontem, acho que vc tem razão sim...
A gte precisa disso, ué, faz parte do progresso como vc mesmo disse...
Seguinte, tô passando memso pra dizer que agora tô por aki sempre já que vc me falou do blog agora, rs...
Bjus

14/1/06 20:05  
Anonymous Anônimo said...

E o que você, como conhecedor da área da ciência,tería a dizer sobre a aplicação de técnicas alternativas ao uso de animais na ciência(que existem!) e que por comodismo, tradicionalismo ou qualquer outro motivo,(que a meu ver não justifica!) não se dispõe a aplicá-las?
Um abraço!

18/10/06 11:53  

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