sábado, junho 17, 2006

A quantificação da beleza

Esse texto, mais do que uma dissertação ou análise, é uma reflexão sobre o Belo, sobre uma possível quantificação do grau de beleza de algo, seja uma pintura, uma música, uma escultura, um texto... Também com esse texto, gostaria de fazer um diálogo com outros textos afins [1, 2], discutindo algumas idéias e ratificando outras a respeito do julgamento do belo e do não-belo.

O que é o “Belo”? Uma vez um professor de história iniciou uma aula fazendo essa pergunta para minha sala. Entre respostas inúteis e comentários desinteressantes, eu preferi ser surdo. Até que depois de vários minutos de zumzumzum ele mesmo respondeu: “O belo é aquilo que representa uma época. Uma obra de arte só é bela se ela fizer sentido e resumir de alguma maneira toda a expressão cultural de uma época.” Achei uma “bela” resposta. Como exemplo, ele citou senão outra, a Gioconda, não só pelos belos traços, mas pelo resumo mecanicista do Iluminismo naquele quadro, pela perfeição simétrica, parecendo ter sido feito com esquadro e régua. Para quem leu o livro de Dan Brown (eu não li ainda) pode haver evidências de outros mistérios acerca da pintura, mas elas ficarão de fora dessa reflexão, pelo menos por enquanto.

Indo um pouco adiante na história da arte, temos a beleza evidente dos versos de Fernando Pessoa. O que fez desse poeta português tão brilhante? Era a pessoa certa na época certa, com os versos de verdades tão múltiplas quanto sinceras: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente./ E os que lêem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm...” Poetas, críticos literários e muitos outros admiram esse poema (Autopsicografia) não só pelas rimas ricas e idéias bem elaboradas, mas por toda a inovação e beleza que o próprio texto inspira numa metalinguagem simplesmente brilhante, mas não demasiadamente complexa.

E o velho Machado de Assis? Nunca me perdoaria se não o citasse nesta reflexão: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. Inusitado, inovador, ousado. A reflexão da relação do homem com o seu mundo. Não se observa a antiga “beleza poética”, mas algo novo. Irônico e sincero: impactante. Talvez nessa contradição a beleza intrínseca da sua obra (Memórias Póstumas de Brás Cubas).

Agora, parafraseando um colega [1], também tenho o Moisés de Michelangelo como uma de minhas esculturas preferidas. Completamente justificável, para mim e para ele, a reação irada do mestre florentino que, após ordená-la a falar, não recebeu nada mais que a indiferença do profeta marmóreo.

Estranho que a justificativa do meu antigo professor de história para o Belo se encaixa de maneira ímpar e impecável para cada um dos exemplos selecionados. Não por algum acaso, com certeza, mas pela precisão encontrada por ele para definir o Belo para mentes “em desenvolvimento” para não dizer “subdesenvolvidas” no colégio. Agora, paremos para analisar o nosso próprio mundo. A era “Contemporânea”, com esse nome dado por historiadores na falta de outro mais significativo, poderia ser resumida a uma obra de arte? Quem conseguiria? Niemeyer? Eu até que não desgosto daquelas curvas todas, seria toda essa curvatura um reflexo da nossa sociedade? Estamos nos desviando do nosso destino ou algo assim? Prefiro as curvas góticas (opa!). A riqueza de detalhes das antigas catedrais é assustadora. Arcos ogivais e altíssimas torres rumo ao infinito. Uma espiritualidade enorme e sem fim. Possivelmente você leitor não gosta de tantas figuras de linguagem em uma só leitura. Então vou evitar as hipérboles, pelo menos, de agora em diante.

Voltando às curvas de Niemeyer. Temos ou não um resumo de nosso tempo? Se bem que o tempo dele já foi, certo? Então teríamos naquelas obras um resumo do século XX? Acho que fica mais fácil analisar isso daqui uns 50, 100 anos... Voltarei a discutir isso, se ainda em vida, daqui a algumas décadas.

Até agora falamos de artes um tanto quanto puras, elitizadas, como diriam alguns. Se formos para o que chamamos de cultura popular, e, mais especificamente, à música, podemos fazer análises ainda mais interessantes sobre o que é belo, de fato, e o que não é.

Dizem os antigos que música é a mistura de poesia, rítmo, harmonia e melodia. Eu, humildemente, introduzo o fator “complexidade” para minha análise. Não por eu me achar demasiadamente inteligente e por pretender entender musicalidades complexas, mas por ter chegado à conclusão de que o grau de “riqueza” de uma música depende da complexidade tanto da mistura de influências, quanto da complexidade de sua própria estruturação.

A sistematização do conhecimento humano e da própria memória em categorias coloca tanto Tati Quebra-Barraco quanto Beethoven na mesma categoria de “compositores”. Ainda bem que existem subcategorias como “Funk” e “Clássico” para separar os dois. Mas eu prefiro separar os compositores em mais duas categorias: “Ruim” e “Bom”. Já estando na devida respectividade de qual dos compositores vai para cada categoria, em ambas as classificações.

Poderíamos usar os critérios já existentes com a minha adição? Vejamos: poesia, ritmo, melodia e complexidade. Todos com pesos iguais, embora saibamos que em músicas instrumentais seria absurdamente injusta uma avaliação pelo item poesia, uma desonestidade sem tamanho. Temos portanto: Tati Quebra-Barraco com uma poesia mais inexistente do que a de Beethoven em seus clássicos instrumentais (desculpe, mas não consegui evitar a hipérbole), um ritmo constante e marcante. Talvez ela passasse com 5 ou 6 numa avaliação de coordenação motora e ritmicidade. Uma melodia invariada, desafinada e odiosa. A harmonia é de tamanha fraqueza que é de longe superada por relinchos, mugidos, latidos e urros pseudossincronizados. A complexidade obteria valor negativo se não estivéssemos trabalhando no conjunto dos números Naturais. A norma culta é tão existente quanto é presente nas conversas monofônicas de mus musculus em caixas de polipropileno. Não vou comentar sobre Beethoven para não mais rebaixar a já rebaixada compositora carioca.

Como um primeiro passo para a quantificação da beleza, deveria haver além do estabelecimento de uma escala, o estabelecimento de um zero. Lembrando da escala Kelvin de temperatura, que seria um bom modelo, deveríamos procurar uma música simplesmente na qual não houvesse música. Apesar das críticas, as músicas da Tati Quebra-Barraco ainda são músicas. Péssimas, mas músicas. O que seria o zero da música? Uma não-música? Quem sabe a baderna de uma sala de crianças no recreio? Ou então o mais absoluto silêncio? Num quadro, então. Temos tela em branco e os rabiscos de Miró. Ambos são não-arte, embora o primeiro seja puramente uma não-pintura e o segundo seja pura e simplesmente “pintura”. E na literatura? O que seria litearatura e o que não seria literatura? O que faz um texto ser literatura? Na opinião da Luciana 38, plantonista de Português do CUJA (Cursinho pré-Universitário Jeannine Aboulafia), todos os textos são literaturas, pois todos podem ser analisados. Apesar da verdade contida na afirmação da colega, não são todos os textos que fazem a diferença. No nosso dia-a-dia, quando tratamos de literatura científica, já estamos pensando em textos, papers, que fizeram certa diferença em alguma análise de observações e/ou de experimentos acerca de algo da biologia, da química, e de outras ciências. Muitos dos textos, e possivelmente também este, não contribuem significativamente para o progresso da humanidade. Talvez chamemos esse tipo de obra de “obra de arte”. Talvez... E talvez seja este também um texto literário. Mais metalinguagem impossível.

Por fim, gostaria de concluir que minhas idéias, na verdade são inconclusivas. Espero pelo menos ter colocado um pulga atrás da orelha, e ter propiciado uma pequena reflexão sobre os julgamentos de arte, sem um discurso “politicamente correto”, tratando não-arte como arte, não-belo como belo. Sem basear a análise na falsa prerrogativa de que “gosto não se discute”. O que se confunde neste dito popular é “gosto” com “liberdade individual”. Já comentei a respeito em outros textos [1, 2], com a análise culminando na existência da adoração do não-belo, que também é não-arte. E também da existência, muito frequente, da rejeição do belo, da arte, e do que realmente foi importante para a humanidade avançar culturalmente com o passar das eras.

A nossa sorte é que não se depende de uma adoração do belo por parte de toda a população para essa evolução acontecer. Basta uma pequena parcela. Mas essa pequena parcela decresce e a preocupação se dá na recuperação da consciência das elites, daqueles que precisam conhecer o belo para fazer a diferença e sustentar, como Atlas, a humanidade em seus ombros e levá-la adiante, em sua progressão cultural e não rumo ao apocalipse do desdém, do funk da Tati Quebra-Barraco, de auto-retratos de um boneco de palha e da auto-destruição da nossa cultura.


1. Marcelo Gonzaga de Oliveira, ALEA IACTA EST,
http://aedisvocis.blogspot.com/2006/06/artistas-e-arteiros.html
2. Rafael Alves da Silva, Beligerante Probidade,
http://belprob.blogspot.com/2006/01/nova-roupa-e-nova-arte.html